Este é o Variância, um Spin-off do podcast Intervalo de Confiança, com periodicidade igualmente quinzenal. Este programa é mais curto e tem por objetivo trazer notícias ou curiosidades sobre algum assunto relacionado à ciência e jornalismo de dados ou sobre algum dado específico. Por ser mais curto, tanto a edição e conteúdo são mais simples e mais diretos.
Neste episódio, Nicolli Gautério faz o convite para a percepção dos temas referentes ao setembro amarelo sob uma perspectiva distinta do que realmente compartilhamos. Um olhar para as diversas nuances do sofrimento, tirando o foco do ato suicida propriamente dito.
Apresentou este episódio Nicolli Gautério. A edição foi feita por Nicolli Gautério e a vitrine do episódio por Diego Madeira.
As imagens usadas na Vitrine do episódio, com exceção da marca Intervalo de Confiança, foram extraídas do site pexels.com.
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Transcrição
Esta transcrição foi feita por Karla Braga e é uma reprodução fiel ao que foi dito no episódio. A narração do episódio é de Nicolli Gautério.
E aí? Estamos começando mais um Variância, o spin-off do intervalo de confiança, onde a equipe traz individualmente os assuntos que nos interessam, o que a gente anda lendo, pesquisando. E hoje eu vou falar sobre o setembro amarelo. É um assunto bem delicado; é um assunto que me move muito, durante este mês principalmente, quando eu encontro as campanhas, elas surgem nas redes sociais… Eu queria muito falar sobre isso faz um tempo, mas eu não encontrava uma maneira de explicar para as pessoas o que eu estava pensando de uma forma que elas entendessem, deixando um pouco de lado todo esse tabu. E o podcast é uma coisa assim: a pessoa está me ouvindo, ela não pode me interromper e, se ela não quiser mais me ouvir, ela pode parar. Eu acho perfeito, é uma ferramenta perfeita. Estou brincando, gente. Inclusive eu adoraria se vocês entrassem em contato pra gente conversar sobre isso, pra dar um feedback. Vamos construir essa rede!
Então, a minha ideia é falar sob uma nova perspectiva sobre o setembro amarelo. O objetivo desse episódio não é desvalorizar as diferentes manifestações que a gente encontra, principalmente nesse mês. Narrativas informativas, artísticas, autobiográficas sobre o tema, mas trazer um olhar mais responsável, considerando a esfera social.
O setembro amarelo começou como uma campanha em 2015 e nos últimos anos ela ganhou espaço nas redes sociais com esse conteúdo em diversas formas. Pra mim, o algoritmo traz mensagens geralmente de autoajuda, destacando a força que o individuo tem, trazendo dicas para evitar ao máximo que a pessoa cometa suicídio.
Será que todas as pessoas têm as mesmas condições de lidar com esses pensamentos? Será que todas as pessoas têm acesso à informação, ao atendimento? Será que quando eu sou uma pessoa que é mulher LGBTQ branca, da mesma forma como se fosse uma mulher também LGBTQ+ negra? Será que uma pessoa rica tem os mesmos atravessamentos que uma pessoa pobre? Será que uma pessoa trans tem mais ou menos pensamentos e ideação suicida que uma pessoa sis, hetero, homem? Será que essas campanhas consideram tudo isso?
Nenhuma dessas representações sociais é determinante para que a pessoa tenha mais ou menos sofrimento, mas a forma com que a sociedade vai lidar com a presença dessas pessoas na esfera pública é diferente. A forma de sofrimento individual por motivos biológicos, por motivos de eventos específicos que aconteçam na vida dessas pessoas não tem uma campanha que possa considerar cada coisinha, então, quando a gente pensa numa campanha, a gente tem que pensar em coisas que atravessam as pessoas de forma comum e aí a gente considerando e refletindo sobre esses problemas mais comuns, que a gente consegue minimizá-los, os problemas que são individuais aí a pessoa vai lidar da forma que precisar e isso vai depender de outras questões, da vida da pessoa, né?
Aí eu fico me perguntando qual é a vantagem que nós temos em não permitir que alguém cometa suicídio. Será que nós estamos pensando no bem-estar dessa pessoa? Ou no nosso, que não vamos conseguir lidar com essa situação de ter uma pessoa próxima que comete suicídio. Eu entendo que essa minha afirmativa pode parecer muito insensível. Mas presta atenção; acho que é muito pelo contrário: a minha necessidade de falar sobre isso é focar na prevenção da ideação suicida, que é o período em que nós estamos em sofrimento. A minha ideia é que uma campanha de prevenção pense na prevenção e não na procrastinação de sofrimento.
Suicídio não é uma doença tipo sarampo, gripe, que prevenir é evitar que se contraia aquilo. [Suicídio] não é uma coisa que acontece de uma hora pra outra e prevenção não é prevenir só este ato, porque… vamos pensar no exemplo de um balão. (não sei como vocês chamam, mas daqui onde eu moro balão é bexiga assim de aniversário, sabre? Então ok). A gente compra vazio, e ele tem aquele formatinho e o látex (látex? Borracha?) está ali, ela está maleável, como se fosse confortável naquele estado que está ali. Quando a gente começa a encher, vai ficando cada vez mais tensa essa superfície. Ela vai ficando mais dura, mais tensa. Aí conforme a gente vai enchendo, enchendo, enchendo, cada vez mais ela vai ficando instável, até o ponto em que ela vai explodir. Quando o balão explode, ele vira de novo aquela borrachinha que a gente tinha lá no início. Então, o movimento de toda a parte de tensão daquela superfície é enquanto a gente está enchendo, é todo esse processo. Evitar que o balão arrebente não é evitar só que ele arrebente, até porque ele vai voltar praquela outra forma (arrebentado? Sim). O evitar que ele arrebente é a gente ver como vai ser esse processo da gente encher ele; depois que ele estiver com aquela forma instável, como é que a gente vai manipular ele para que ele não fure.
Eu penso nessa questão do suicídio assim: a gente precisa pensar em como que essa pessoa vai ter condições de vivências para que se evite a ideação, esse momento em que a gente está em sofrimento, que surgem esses pensamentos. Porque a ideação suicida não é assim: “ah, tô a fim de me matar” ou “ah, vou cometer suicídio”. Eu vou pensar como que eu vou fazer isso e não é como a gente faz para procurar um lanche no Ifood. É um processo de sofrimento e aí é esse processo que é mais intenso e mais tenso, até o momento em que a pessoa vai cometer aquilo.
Então, quando a gente pensa numa campanha, eu não consigo ver sentido da gente focar do jeito que se foca, tanto na prática do suicídio em si. Eu entendo que se fala muito em depressão nessas campanhas também, mas a gente traz um viés sempre muito farmacológico, onde o sofrimento é legitimado pela doença. Eu falo a gente porque eu tenho certeza de que em vários momentos eu já fiz isso. Nós estamos imersos em um sistema que faz com que a gente faça esse tipo de afirmação e eu já vou chegar ali.
Mas quando a gente fala em sofrimento, a gente traz a questão da depressão, é como se o sofrimento só fosse legitimado quando eu falo que é doença. Quando eu falo “olha, a minha dor é real porque ela é uma doença, porque existe um CID, depressão é doença, nós precisamos fazer um tratamento com remédio, nós precisamos…”. Eu entendo que existam pessoas que precisam de tratamento farmacológico. Eu acho importante que a gente faça não apenas terapia. Em alguns casos, sim, é recomendado que se faça um acompanhamento com o psiquiatra também. Mas a gente não pode cair nessa de só legitimar quando tem o nome “doença”. Todo sofrimento é legítimo. Toda forma de sofrimento é legítima. E ela não pode ser só legitimada quando a pessoa comete suicídio; não pode ser legitimada só quando a gente não quer que a pessoa cometa suicídio, mas não entende todo esse processo que a leva a tomar essa decisão. Não pode ser legitimada apenas quando se faz o uso de medicação.
Sobre contexto que a gente está de acabar legitimando as coisas só por esse viés, tem uma pessoa maravilhosa, que é o Paul Preciado, que tem esse livro O testo junkie. O Paul Preciado faz assim: lê Foucault, lê outras nóias e traz uma visão mais ou menos como a gente estava construindo no episódio que a gente falou sobre inteligência artificial, quando eu trouxe algumas inquietações sobre como é o nosso comportamento nessa sociedade tecnológica. Ele traz questões de como a nossa subjetividade é construída nesse sistema. Traz meio como foco teoria queer sobre sexualidade, mas tem umas coisas que são interessantes pra gente pensar aqui e agora. Eu vou falar mais sobre isso em outros episódios porque… meu crush!
O Testo Junkie fala assim:
As mudanças do capitalismo a que vamos testemunhar se caracterizarão não só pela transformação do sexo, do gênero e da sexualidade, da identidade sexual e do prazer em objetos de gestão política da vida, como Foucault já havia instituído em sua descrição biopolítica dos novos sistemas de controle social, mas também pelo fato de que essa gestão em si mesma será levada adiante por meio de novas dinâmicas do tecnocapitalismo, avançando sobre na mídia global das biotecnologias. Somos confrontados com um novo tipo de capitalismo, quente, psicotrópico e punk. Essas transformações recentes impõem um conjunto de dispositivos microprotéticos de controle da subjetividade por meio de novos protocolos técnicos biomoleculares e multimídias. Nossa economia mundial depende da produção e circulação interconectada de centenas de toneladas de esteroides sintéticos e órgãos, fluidos e células, tecnosangue, tecnoesperma, tecnoóvulos, etc., tecnicamente modificados. Depende da difusão global de um fluxo de imagens pornográficas, depende da elaboração e distribuição de novas variedades de psicotrópicos sintéticos legais e ilegais, como diazepan, viagra, speed, prozac, depende do fluxo de sinais e de circuitos digitais de informação. Depende que todo o planeta se renda a uma forma de arquitetura urbana em que mega cidades miseráveis convivam com altas concentrações de capital sexual. Esses são só alguns indicadores do surgimento de um regime pós-industrial, global e midiático, que a partir de agora chamarei de fármaco-pornográfico. O termo se refere aos processos de governo biomolecular, fármaco e semiótico-técnico-pornô, subjetividade sexual, dos quais a pílula e a Playboy são os dois resultados paradigmáticos.
Enfim, essa questão sexual eu vou trazer em outros episódios, como eu já comentei, mas é uma visão muito de como que a farmacologia e a tecnologia, nesse novo sistema capitalista que a gente está, constrói a nossa subjetividade e aí vai legitimar ou não as nossas práticas. A gente passa por todo um processo de mudanças no setor da saúde mental, a gente tem a reforma psiquiátrica, a gente tem a construção de CAPS, as pessoas passam então a não ficar mais em hospitais e a serem atendidas nesses dispositivos. A noção de hospital psiquiátrico é a noção de hospício, esse termo nojento que eu quero trazer mesmo, pra que dê o impacto mesmo, eles não são estruturas físicas que estão na cidade, são estruturas subjetivas construídas no nosso comportamento através da mídia, através do consumo, através de várias questões que eles atravessam. Então, elas ainda existem e nós estamos presos nelas.
Tudo isso para falar que quando a gente pensa numa campanha, a gente quer atingir uma comunidade, uma sociedade, várias pessoas, a gente não pode trazer apenas práticas individuais, trazer conteúdos individualizados, tipo “você é forte” ou “você pode dar uma volta na quadra e se sentir melhor”. Não! A gente tem que pensar em condições de trabalho que sejam dignas, a gente tem que pensar em ferramentas para que a gente possa desarticular o patriarcado, para que as mulheres consigam ter condições dignas de trabalho, de saúde, de cuidar do seu próprio corpo, de tomar conta da sua própria vida. A gente precisa falar sobre as questões de raça, de classe, a gente precisa pensar nessas questões que estão permeando a nossa sociedade e fazendo com que a gente se desarticule, para que aí o capitalismo, dessa forma tecnológica, forma patológica, nos controle.
Como eu sugeri no nome do episódio, existem várias nuances na depressão, ideação suicida e no sofrimento em geral, pois, como eu já comentei, não precisa ser enquadrado numa patologia para ser legítimo como sofrimento. Então não apenas a esfera social vai interferir, não apenas essas questões de recorte vão interferir. O que eu queria deixar bem exposto é que eu entendo que como uma campanha ela deve abraçar as nuances que estão atravessando a maioria das pessoas ou os ambientes, que é a forma que a gente tem para prevenir.
Existem as demandas fisiológicas, sim, que podem interferir, não apenas aquela visão de “ah, os neurônios e blábláblá”. Não, existem questões fisiológicas, hormonais, existem doenças crônicas, existe alguma doença mais complicada que pode trazer alguma questão mais complicada na psiquê, no sentido de como é que a pessoa vai se colocar nessa nova configuração do seu corpo, das suas vivências… Só que isso também vai alterar na esfera social. Que é como eu vou lidar com o meu corpo perante o outro, talvez um corpo que seja a partir de agora deslegitimado pela sociedade. São coisas que estão sempre atreladas umas às outras, não tem como a gente separar essas esferas. Na verdade, essas esferas a gente fala assim por uma forma mais didática, mas no sentido real, é uma coisa misturada, é uma grade sopa.
Tem questões que são de construção das nossas próprias vivência, das nossas próprias aprendizagens, da nossa psiquê, que são singulares. Tudo isso vai interferir. Porém, como campanha, não tem como a campanha considerar essas outras nuances, que são individuais. Nós precisamos pensar nas questões que…
Então, como campanha, acho legal a gente frizar que existem essas nuances, que existem esses atravessamentos do bio-psico-social e discutir na esfera social, que é a que nós estamos compartilhando, as possibilidades, para que ela seja mais ok de conviver. E compreendendo sempre a questão do suicídio como um processo. Como um processo de sofrimento, como um processo que nem sempre é visível da forma como a gente imagina que seja. Talvez não seja alegórico como a gente imagina que seja. Mas está ali e não é o ato em si o mais importante nesse sentido e sim todo o processo.
E compreendendo que impedir que a pessoa tome essa decisão sem oferecer uma nova perspectiva, na verdade não tem como a gente oferecer a perspectiva, a gente pode oferecer ferramentas para que a pessoa consiga se perceber de uma outra maneira, perceber aquele lugar que ela está de uma outra maneira. É uma atrocidade. É manter um sofrimento em conserva.
Eu gostaria de oferecer como indicação um episódio do Podcast Lado B, do Rio, 116 +1 – Doentes de Brasil, com o Fernando Tenório e também, por uma perspectiva mais engraçadinha, a Laurinha Lero, podcast Respondendo em Voz Alta, o episódio 17 – Não é difícil calcular a idade de Jesus. É a mesma energia, mas de uma maneira mais leve que a minha. Meus parabéns! Hoje eu até vi uma mina no ônibus ouvindo o podcast dela e me deu aquela vontade de abraçar a menina e ser a melhor amiga dela. Esse episódio foi editado por eu mesma, Nicolli Gautério.